quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A Palinologia como ferramenta na reconstrução paleoambiental do Quaternário na Amazônia

A alta diversidade vegetal amazônica tem sido motivo de grande especulação científica nas últimas décadas. Que a floresta sofreu modificações ao longo de sua história é fato, o que ainda não está bem resolvido é a dimensão destas modificações. Para uma linha de pensamento a diversidade é fruto de estabilidade, continuidade da cobertura vegetal, ao passo que quem pensa o contrário advoga por um cenário de fragmentação vegetacional.

Por Carlos D’Apolito Júnior

O registro fóssil é um dos meios utilizados para se especular sobre a constituição dos paleoambientes da região amazônica, e o registro paleobotânico é sem dúvida melhor representado por palinomorfos (pólens, esporos de briofitas, pteridofitas, fungos, cistos de algas, etc.), não somente pela qualidade da preservação destes microfósseis, mas também pela quantidade e diversidade morfológica passível de aplicação taxonômica. Uma vez que a vegetação continuamente produz uma marca, pólen e esporos espalhados no ambiente, o que é chamado de "precipitação polínica", basta um sítio onde existam boas condições de sedimentação, como lagos, para que esta marca seja incorporada a sedimentos e desta forma selada a história da vegetação de uma determinada área.

Diversidade morfológica de grãos de pólen (imagem por Marcos Gonçalves Ferreira)

Aliada à presença de remanescentes vegetais em sedimentos está a datação e a natureza estratigráfica destes sedimentos. Para cada escala de tempo existe um diferente método, o mais utilizado e preciso e o método de datação radiocarbônica. Porém, o método do C14 limita-se até cerca de 50 Ky (mil anos) AP (antes do presente), o que resulta em histórias ambientais relativamente curtas. O período Quaternário é reconhecido por suas glaciações rítmicas, e uma vez que se conhece com certo nível de detalhamento a condição paleoambiental durante parte da última glaciação, com ênfase no Ultimo Máximo Glacial (UMG), a interpretação paleoecológica pode ser extrapolada e assim um conjunto de hipóteses biogeográficas surgem.

Não suficientes a riqueza de espécies e suas complexidades taxonômicas na Amazônia, situações ideais para o estudo paleopalinológico não são comuns. Os melhores e muitas vezes únicos sítios para a amostragem de sedimentos quaternários são lagos, especialmente os isolados de grandes cursos d’água. Atualmente os dois principais registros polínicos de sedimentos lacustres estão separados entre si por alguns milhares de quilômetros e, como ressaltado por Colinvaux & de Oliveira (2001), usar estes dois estudos para definir um cenário paleoecológico na Amazônia é como usar dados de Moscou para inferir parâmetros ambientais de Paris, em analogia a escala continental da bacia amazônica (figura ao lado, extraída de Colinvaux & de Oliveira 2001).

As evidências
A sudeste da bacia amazônica uma sondagem de um dos lagos da serra dos Carajás foi estudada por Absy et al. (1991). Nos mais de seis metros retirados do fundo do lago, sedimentos de mais de 50 Ky mostraram que a floresta local foi invadida por vegetação mais secas por quatro vezes, uma delas inclui o UMG, onde há um hiato sedimentar de cerca de 10 Ky. É interessante notar que mesmo no Holoceno existe uma fase mais seca, e a floresta como ela é atualmente parece ter se instalado por volta de 6 Ky AP. A vegetação atual da serra é uma mistura de savana e vegetações mais fechadas, e ocupa a região de corredor seco natural que liga o norte da Amazônia com o Brasil Central. De fato, tanto o registro polínico quanto a estratigrafia não deixam dúvidas sobre a aridez inferida. Entretanto, é de se ressaltar que o fato deste sítio estar em uma área naturalmente mais seca, apenas mostra uma tendência de acentuação desta condição e não a invasão de savanas na Amazônia.

Diagrama de porcentagem resumido, Carajás (extraído de Absy et al. 1991).
(clique na imagem para ampliar)

No Morro dos Seis Lagos, município de São Gabriel da Cachoeira (AM), uma sondagem do lago da Pata foi usada para estudo paleopalinológico por Colinvaux et al. (1996). O registro polínico é interpretado como constante, ao contrário de Carajás a concentração de pólen de herbáceas é mínima e nunca supera a de arbóreas. O único período seco está compreendido entre 35 e 23 Ky ou pouco mais, onde os sedimentos apresentam evidência de oxidação e contém palinomorfos em grande concentração, o que mostra baixa taxa de sedimentação, ou seja, mais seca. Contudo, ainda neste período o registro é contínuo. No pleniglacial (entre mais ou menos 70 Ky e 15 Ky), a ocorrência de táxons montanos, como Podocarpus, Hedyosum, Myrsine e Weinmania, levam os autores à conclusão de que houve redução na temperatura, calculada na ordem de 5°C. Já o Holoceno é bem diferenciado pela alta concentração de pólen das palmeiras Mauritia e Mauritiella e da palustre Sagittaria, entre outros elementos típicos de floresta úmida.

Diagrama de porcentagem, Lago Pata (modificado de Bush et al. 2004).
(clique na imagem para ampliar)

Outros registros importantes contribuem para a formulação de um cenário paleoambiental. Os sedimentos da foz do amazonas (sondagem ODP-932) contem uma assemblagem polínica considerada "monótona", sem grandes alterações entre os tipos vegetacionais inferidos através do conteúdo polínico. Neste estudo, novamente existem indicações do aumento da representação de táxons montanos/andinos durante o pleni-tardiglacial e no geral, a floresta parece ter permanecido estável durante os últimos 50 Ky, sem o avanço de vegetações de clima seco. A ODP-932 é uma representação de toda a bacia amazônica, já que os sedimentos depositados no "amazon fan" são oriundos dos rios que nascem desde a cordilheira andina até os mais próximos à foz, e, embora compreenda uma grande escala geográfica, é enviesado pelo simples fato de diferentes fontes de pólen serem analisados juntos. Além de não ser possível a diferenciação entre biomas/habitats diferentes, é provável que a vegetação ripária seja mais bem representada do que a o resto da vegetação por ela cercada, como já apontado por alguns autores, sem contar os problemas inerentes ao retrabalhamento dos sedimentos, causado por erosão das encostas dos rios durante fases de baixo nível d’água. Na reserva Maicuru, a Leste da bacia, um morro similar ao morro dos seis lagos situa-se a 0° de latitude. O maior dos lagos deste morro também foi sondado e o registro é longo, porém descontinuo. A fase seca é evidente pelo hiato sedimentar entre 30 e 15 Ky.

Uma evidência da substituição de floresta por vegetação seca está em Rondônia, na sondagem de Katira. A área fica ao Sul da Amazônia, a 100 Km do ecótono floresta-savana, os sedimentos correspondentes ao UMG são compostos majoritariamente por pólen de gramínea, e outros elementos herbáceos de savana. Aos pés dos Andes, por volta de 1000 metros de altitude, dois sítios estudados (Mera e San Juan Bosco - Equador) revelaram elementos andinos se estendendo a menores altitudes, o que foi interpretado como uma queda na temperatura na ordem de 5°C e constância de um ambiente bastante úmido na base da cordilheira. Da mesma forma, o registro ininterrupto do Lago Consuelo (Peru), mostra forte discrepância entre Pleistoceno e Holoceno, com táxons da floresta Montana melhor representados durante o pleni-tardiglacial.

Construindo um cenário
A interpretação histórica do registro fóssil é mais acurada a nível local, aliás, quanto menor o sistema de captura da chuva polínica (lago, etc), mais local é a representação. Uma pequena poça contém mais polens das plantas que estão diretamente no seu entorno, um lago grande representa bem a vegetação local, e sedimentos de rio trazem pólen de uma bacia hidrológica inteira. Uma vez que temos representações mais seguras a nível local, logo o que se deve fazer para reconstruir um paleoambiente de dimensões continentais como a Amazônia é juntar muitos destes pontos e interpretá-los conjuntamente.

Embora a receita pareça simples, reconstruir um cenário paleoambiental da Amazônia para o quaternário tardio não tem sido tarefa fácil. O que encaramos na planície amazônica é o velho e recorrente problema de amostragem, com a ressalva de que não existem mais pontos amostrais não (apenas) por falta de esforço, mas também porque os locais ideais para a coleta de sedimentos lacustres são escassos. Logo, o que se discute em paleoecologia do UMG da Amazônia é puramente especulativo, e nunca conclusivo.

Desde que os primeiros diagramas polínicos foram publicados alguns autores tem escrito sobre como seria a vegetação durante períodos glaciais. Os primeiros mapas previam refúgios isolados com base em dados de distribuição de alguns conjuntos de táxons, e esse na verdade foi o pontapé inicial, estimulador, para que se pusesse a contra prova a hipótese dos refúgios. Deixando os detalhes de toda essa discussão de lado, o que temos hoje de mais atual é o modelo paleovegetacional proposto na figura ao lado [modificada de Anhuf et al. 2006; Lago Pata (vermelho), Carajás (verde) e ODP-932 (azul)].

Este modelo contabiliza uma perda de floresta (tanto a tropical densa quanto a semi-decidual) de em torno de 54% na bacia amazônica, contra 84% na África, mas os autores são realistas sobre a falta de melhores dados para a Amazônia, e consideram a possibilidade de diferentes interpretações. Assim como modelos anteriores, a maior área de floresta úmida densa é contínua, não fragmentada, e mantendo-se a Oeste, com os mais prováveis avanços de vegetação seca a Leste, Sul e Norte da bacia. Os sítios de Carajás, Maicurú e Katira (RO) são claramente inseridos em áreas de expansão de vegetação seca, nas bordas do que teria sido a floresta densa. O sítio do Lago da Pata está na extremidade de um grande bloco de floresta, e a interpretação segue a original proposta pelos autores como sendo um registro de constante representação de elementos típicos de floresta. Inicialmente, os autores do trabalho no Lago da Pata usavam-no para provar a existência contínua da floresta amazônica durante períodos glaciais, incorrendo em seu próprio erro (analogia Moscou-Paris), enquanto outros o interpretavam como a prova da existência de um refúgio na região, o que é condizente com os mapas primordiais.

A ocorrência de táxons montanos em vários dos registros pode mostrar um resfriamento da bacia durante o pleniglacial, e especialmente para os Andes é tida como a evidência de que os cinturões de vegetação (páramo, bosque andino, etc.) foram rebaixados criando comunidades vegetais floristicamente misturadas, sem análogos atuais, contrariando a idéia prévia de que os cinturões desceram como entidades únicas.

Neste texto, tratei de como os dados palinológicos são usados, porém existem outras fontes de dados valiosas para interpretações paleoambientais, como a atividade de dunas no pleniglacial, a ocorrência de grandes mamíferos em áreas hoje florestadas, entre outros conjuntos de dados geo-paleontológicos.

Nota: O último glacial é dividido em inferior, médio e superior. O médio é o pleniglacial (entre 70 Ky e 15 Ky). De 15 a 11 Ky é o tardiglacial, que engloba um evento chamado de Young Dryas (+-11 Ky), o último suspiro do glacial antes de entrar de vez nas condições úmidas e quentes do Holoceno. O Último Máximo Glacial (UMG) está dentro do pleniglacial.

Para ler

Anhuf et al. (2006). Paleo-Environmental Change in Amazonian and African Rainforest during the LGM. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology 239, 510–527.

Colinvaux & Oliveira (2001). Amazon Plant diversity and climate through the Cenozoic. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology 166, 51-63.

Haffer & Prance (2002). Impulsos climáticos da evolução na Amazônia durante o Cenozóico: sobre a teoria dos Refúgios da diferenciação biótica. Estudos avançados 46, 175-206.

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