A biogeografia é um ramo da ciência essencialmente multidisciplinar que está em plena revolução metodológica em grande parte causada pela influência das ferramentas moleculares. As técnicas empregadas vem reduzindo o abismo entre estudos microevolutivos (tamanho/estrutura populacional, expansão/contração de distribuição geográfica, taxas de migração, dispersão em longa distância, etc.) e macroevolutivos (especiação, extinção, composição de biotas), podendo revelar espécies crípticas em casos em que não existe variação morfológica evidente. Uma contribuição peculiar que as filogenias moleculares exercem é a possibilidade de incorporar o tempo nas análises espaciais, permitindo a datação de eventos cladogenéticos e o teste de hipóteses sobre eventos paleoclimáticos e geológicos.
Caminhos paralelos
Basicamente, a biogeografia estuda a distribuição geográfica dos seres vivos, mas abriga vertentes distintas, como a biogeografia histórica e a biogeografia ecológica (Crisci 2001). Para ambas, a diversidade biológica é resultado da história da vida no planeta expressa através de mudanças de forma no espaço e no tempo. Porém, a biogeografia ecológica tem estudado processos ecológicos determinantes dos padrões de distribuição dos táxons geralmente em períodos curtos no tempo, enquanto a biogeografia histórica os processos que atuam em longos períodos (p.ex. milhões de anos). Aparentemente, a divisão entre essas tradições é uma limitação de ordem prática, pois a distribuição dos táxons não é resultado de processos ecológicos ou históricos agindo isoladamente, havendo uma necessidade de integrar essas linhas de pesquisa. Mesmo dentro da biogeografia histórica, existe uma diversidade de métodos e explicações que geram discussões acaloradas.
Um assunto polêmico com potencial de conciliação envolve a polarização entre vicariância e dispersão. Ambos os processos podem explicar a diversificação de populações. Para o modelo vicariante, duas populações se diferenciam após a separação de uma população ancestral pelo surgimento de uma barreira geográfica. Já o modelo de dispersão assume que a população ancestral foi capaz de dispersar além de uma barreira em algum momento no tempo, mas posteriormente foi isolada e acabou se diferenciando em duas linhagens distintas, como ilustrado na figura ao lado (extraída de Crisci 2001). Essas explicações não são mutuamente exclusivas, pois pode haver dispersão após um evento vicariante (Pennington e Dick 2004). De novo, as técnicas moleculares empregadas em biogeografia tem a capacidade integrar e quantificar esses padrões, o que permite o teste de hipóteses sobre a diversificação da biota na Amazônia de forma robusta.
O papel da filogeografia
A contribuição da filogeografia para o desenvolvimento da biogeografia histórica é imensa. A filogeografia vem sendo desenvolvida para estudar processos que determinam a distribuição geográfica de linhagens evolutivas em nível intra-específico ou, mais raramente, de espécies filogeneticamente próximas. Os métodos são dependentes do uso de dados moleculares e tem um viés quantitativo, herdado da genética de populações. Entretanto, embora haja muito em comum em suas premissas e objetivos, o desenvolvimento da filogeografia ocorreu de maneira relativamente independente do restante da biogeografia histórica. Segundo Riddle e Hafner (2006), a falta de integração entre filogeografia e biogeografia histórica pode ser vista pela incongruência entre o uso de termos, conceitos e métodos que são fundamentais para biogeografia histórica. Por exemplo, a falta de integração de métodos é refletida na raridade de estudos de filogeografia que consideram o conceito de área de endemismo, uma unidade fundamental de análise em biogeografia histórica. Em relação ao período de tempo, a maioria dos estudos filogeográficos (barra escura) aborda linhagens em nível intra-específico e por isso está concentrada em tempos recentes, enquanto que os estudos em biogeografia histórica (barra clara) estão mais bem distribuídos no tempo.
Um exemplo da Amazônia: da Silva e Patton 1993
É certo que considerar um ou poucos táxons é insuficiente para reconstruir a história de áreas geográficas. Contudo, o fato que a maioria dos estudos em filogeografia tenha sido feita em nível intra-específico não inviabiliza que estudos envolvendo vários táxons sejam feitos. Desde o início da década de 90, alguns estudos filogeográficos envolvendo populações de várias espécies visaram reconstruir a história biogeográfica de regiões. Como exemplo, achei um estudo que a Lelé desenvolveu com o James Patton na Amazônia (da Silva e Patton 1993). Eles estudaram 9 espécies de roedores arborícolas da família Echymidae pertencentes a 5 gêneros: Mesomys, Isothrix, Makalata, Dactylomis e Echimys. A idéia era testar se as populações das diferentes linhagens apresentavam concordância geográfica em suas diversificações, o que é um forte indício de uma história comum. Eles estudaram 65 indivíduos distribuídos entre 24 localidades (Venezuela, Peru, Brasil e Bolívia), usando sequências do gene citocromo b do DNA mitocondrial para determinar as relações filogenéticas. Os resultados indicam que existem mais de 20 haplótipos de citocromo b e que a distribuição deles tem uma forte estrutura geográfica. Eles indicam uma forte congruência na distribuição dos clados, sugerindo uma história vicariante em comum para esses gêneros. Por fim, eles estimaram em mais de 1 milhão de anos o tempo de divergência entre maiores clados dos gêneros, o que significa que a especiação alopátrica das linhagens que deu origem aos gêneros deve ter ocorrido antes do Pleistoceno.
A evolução da biogeografia
A perspectiva molecular está revolucionando os estudos biogeográficos, permitindo reconstruir a história da diversificação de populações, espécies e biotas com grande robustez. Cada vez mais, a obtenção de dados moleculares em grande volume será mais simples e viável. Por outro lado, ao embutir o tempo como dimensão, é possível também desenvolver modelos preditivos, por exemplo dos efeitos climáticos do aquecimento global sobre as populações e espécies na Amazônia, uma ferramenta importante no planejamento da conservação de espécies ameaçadas nas décadas seguintes. Além de solucionar antigas disparidades, as filogenias moleculares prometem levar a biogeografia a um patamar inovador, integrativo.
Para ler
Para discutir
Caminhos paralelos
Basicamente, a biogeografia estuda a distribuição geográfica dos seres vivos, mas abriga vertentes distintas, como a biogeografia histórica e a biogeografia ecológica (Crisci 2001). Para ambas, a diversidade biológica é resultado da história da vida no planeta expressa através de mudanças de forma no espaço e no tempo. Porém, a biogeografia ecológica tem estudado processos ecológicos determinantes dos padrões de distribuição dos táxons geralmente em períodos curtos no tempo, enquanto a biogeografia histórica os processos que atuam em longos períodos (p.ex. milhões de anos). Aparentemente, a divisão entre essas tradições é uma limitação de ordem prática, pois a distribuição dos táxons não é resultado de processos ecológicos ou históricos agindo isoladamente, havendo uma necessidade de integrar essas linhas de pesquisa. Mesmo dentro da biogeografia histórica, existe uma diversidade de métodos e explicações que geram discussões acaloradas.
Um assunto polêmico com potencial de conciliação envolve a polarização entre vicariância e dispersão. Ambos os processos podem explicar a diversificação de populações. Para o modelo vicariante, duas populações se diferenciam após a separação de uma população ancestral pelo surgimento de uma barreira geográfica. Já o modelo de dispersão assume que a população ancestral foi capaz de dispersar além de uma barreira em algum momento no tempo, mas posteriormente foi isolada e acabou se diferenciando em duas linhagens distintas, como ilustrado na figura ao lado (extraída de Crisci 2001). Essas explicações não são mutuamente exclusivas, pois pode haver dispersão após um evento vicariante (Pennington e Dick 2004). De novo, as técnicas moleculares empregadas em biogeografia tem a capacidade integrar e quantificar esses padrões, o que permite o teste de hipóteses sobre a diversificação da biota na Amazônia de forma robusta.
O papel da filogeografia
A contribuição da filogeografia para o desenvolvimento da biogeografia histórica é imensa. A filogeografia vem sendo desenvolvida para estudar processos que determinam a distribuição geográfica de linhagens evolutivas em nível intra-específico ou, mais raramente, de espécies filogeneticamente próximas. Os métodos são dependentes do uso de dados moleculares e tem um viés quantitativo, herdado da genética de populações. Entretanto, embora haja muito em comum em suas premissas e objetivos, o desenvolvimento da filogeografia ocorreu de maneira relativamente independente do restante da biogeografia histórica. Segundo Riddle e Hafner (2006), a falta de integração entre filogeografia e biogeografia histórica pode ser vista pela incongruência entre o uso de termos, conceitos e métodos que são fundamentais para biogeografia histórica. Por exemplo, a falta de integração de métodos é refletida na raridade de estudos de filogeografia que consideram o conceito de área de endemismo, uma unidade fundamental de análise em biogeografia histórica. Em relação ao período de tempo, a maioria dos estudos filogeográficos (barra escura) aborda linhagens em nível intra-específico e por isso está concentrada em tempos recentes, enquanto que os estudos em biogeografia histórica (barra clara) estão mais bem distribuídos no tempo.
Um exemplo da Amazônia: da Silva e Patton 1993
É certo que considerar um ou poucos táxons é insuficiente para reconstruir a história de áreas geográficas. Contudo, o fato que a maioria dos estudos em filogeografia tenha sido feita em nível intra-específico não inviabiliza que estudos envolvendo vários táxons sejam feitos. Desde o início da década de 90, alguns estudos filogeográficos envolvendo populações de várias espécies visaram reconstruir a história biogeográfica de regiões. Como exemplo, achei um estudo que a Lelé desenvolveu com o James Patton na Amazônia (da Silva e Patton 1993). Eles estudaram 9 espécies de roedores arborícolas da família Echymidae pertencentes a 5 gêneros: Mesomys, Isothrix, Makalata, Dactylomis e Echimys. A idéia era testar se as populações das diferentes linhagens apresentavam concordância geográfica em suas diversificações, o que é um forte indício de uma história comum. Eles estudaram 65 indivíduos distribuídos entre 24 localidades (Venezuela, Peru, Brasil e Bolívia), usando sequências do gene citocromo b do DNA mitocondrial para determinar as relações filogenéticas. Os resultados indicam que existem mais de 20 haplótipos de citocromo b e que a distribuição deles tem uma forte estrutura geográfica. Eles indicam uma forte congruência na distribuição dos clados, sugerindo uma história vicariante em comum para esses gêneros. Por fim, eles estimaram em mais de 1 milhão de anos o tempo de divergência entre maiores clados dos gêneros, o que significa que a especiação alopátrica das linhagens que deu origem aos gêneros deve ter ocorrido antes do Pleistoceno.
A evolução da biogeografia
A perspectiva molecular está revolucionando os estudos biogeográficos, permitindo reconstruir a história da diversificação de populações, espécies e biotas com grande robustez. Cada vez mais, a obtenção de dados moleculares em grande volume será mais simples e viável. Por outro lado, ao embutir o tempo como dimensão, é possível também desenvolver modelos preditivos, por exemplo dos efeitos climáticos do aquecimento global sobre as populações e espécies na Amazônia, uma ferramenta importante no planejamento da conservação de espécies ameaçadas nas décadas seguintes. Além de solucionar antigas disparidades, as filogenias moleculares prometem levar a biogeografia a um patamar inovador, integrativo.
Para ler
- Riddle et al. 2008. The role of molecular genetics in sculpting the future of integrative biogeography. Progress in Physical Geography 32(2):173–202.
- Crisci 2001. The voice of historical biogeography. Journal of Biogeography 28:157-168.
- da Silva e Patton 1993. Amazonian phylogeography: mtDNA sequence variation in arboreal echimyid rodents (Caviomorpha). Mol. Phylogenet. Evol. 2:243-255.
Para discutir
- A próxima reunião (5/11) será sobre esse assunto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário